Quem considera o trabalho infantil um crime, não conhece a história do feirense Júlio Soares de Souza. Ele não foi obrigado a trabalhar. Ele queria, começou aos oito anos de idade e se consagrou como “o melhor operador de rádio de Feira de Santana”.
Ele não está entre os “famosos” da televisão, nem do futebol, e, aposentado, faz questão de viver com tranquilidade, no anonimato, como bom cidadão que é, mas sua vida está diretamente ligada ao rádio, onde, durante muitos anos, ostentou, por merecimento, o título de “Melhor Operador do Rádio de Feira de Santana” e, para muitos da Bahia, também. A história de Júlio Soares de Souza, além de interessante, mostra àqueles que condenam o trabalho infantil, que toda regra tem exceção e, aliás, muitas exceções, e essa é, sem dúvida, digna de servir como exemplo.
Feirense do distrito de Ipuaçu, Júlio Soares veio com os pais para a cidade princesa aos dois anos de idade e, aos sete, começou a se interessar pelos alto-falantes que existiam na cidade. Ia completar oito anos e, quando passava na Rua Monsenhor Tertuliano Carneiro, onde hoje existe uma agência da CEF, “amarrava” os passos em frente ao estúdio do SPR Constelação, serviço de alto-falante que pertencia a Augusto Alves Vitória.
Ele não sabia, mas imaginava que ali dentro estava aquele “mundo maravilhoso” de onde vinham aquelas músicas e aquelas vozes bonitas anunciando lojas e produtos. Era sempre assim. “Anda, menino”, reclamava o pai ou a mãe. Até que um dia ele tanto olhou que alguém falou: “Pode entrar, meu filho”. Era Augusto Alves Vitória, que já percebera o interesse do garoto pelo alto-falante. “Você gostaria de trabalhar aqui?”
Às vésperas dos oito anos de idade, a inesperada pergunta teve uma inesperada resposta: “Sim!”. E ali, aos oito anos de idade, para aquele garoto de pele morena e cabelos pretos, aparência de “meio-índio”, começava a sua existência profissional. Bom mestre, Augusto Vitória, que era dono do serviço de alto-falantes, locutor, operador e corretor, foi lhe ensinando, e ele, que nunca tinha visto nada daquilo de perto, foi aprendendo de forma surpreendente.
Dois grandes picapes, onde eram rodados os discos de música e propaganda, em três rotações – 33, 45 e 78 -, exigiam absoluta atenção do operador, e ele estava ali, trabalhando como se fosse gente grande. Havia o pedal para evitar microfonia, e o operador atuava como um baterista, usando os pés e as mãos simultaneamente. E tinha “gente grande” também, que eram os locutores, com prestígio e muitas namoradas. Afinal, eram os artistas da época.
Júlio Soares lembra nomes como: Ed Carlos, Raimundo Oliveira, Francisco Mário do Nascimento (Chico Baiano), Valter Pitangueira, Lucílio Bastos, José Malta, José Raimundo, Santos Silva “Pé de Valsa”, Joel Magno, Edval Souza, dentre outros. Além do SPR Constelação, havia outros dois sistemas de som e a natural concorrência. Recorda que, em pleno sucesso como a voz mais bonita do Brasil, Cauby Peixoto veio pela primeira vez a Feira de Santana para se apresentar no Feira Tênis Clube, trazido por Joel Magno. “Cauby esteve nos estúdios e conversou brevemente.”
Em 1956, já consolidado como operador de rádio, Júlio Soares foi contratado pela Rádio Sociedade de Feira pelo fundador da emissora, Pedro Matos. “Um homem muito educado, sempre bem trajado de terno, em um automóvel importado.” A emissora funcionava então na Rua Marechal Deodoro, sua segunda sede. Na Sociedade, Júlio Soares, independente de trabalhar na consólide (como as mesas de som eram chamadas), foi um verdadeiro professor, preparando mais de duas dezenas de operadores, dentre eles Edson Fernandes, Milton Hiroshy Watanabe e José Fernandes.
No final da década de 1960, a Rádio Sociedade instalou a primeira gravadora do interior da Bahia, e Júlio Soares passou a ser o responsável pelas gravações, que eram feitas em gravadores AKAI de rolo com duas pistas, uma utilizada como câmara de eco. Depois de aprovada a gravação, era transferida para o acetado (disco) mediante uma agulha magnética que fazia os sulcos. Mas a maior dificuldade era trabalhar no estúdio com apenas um microfone para dois ou mais locutores, cantores e instrumentistas. Quando a gravação era com dois locutores e fundo musical, a tarefa era bem mais fácil.
Depois de 19 anos na Rádio Sociedade, Júlio Soares foi para a Rádio Subaé, inaugurada em 1979, nela permanecendo por 10 anos, até a aposentadoria. Nesse longo período no rádio, ele destaca frei Aureliano de Grottamare (Sociedade) e o empresário Modezil Cerqueira (Subaé), como os maiores gestores do segmento. Em três décadas de rádio, muitas alegrias, momentos de descontração e outros verdadeiramente inusitados.
Em 1968, ao final do 18º Festival Internacional da Música Italiana, em San Remo, vencido por Roberto Carlos cantando *Canzone Per Te*, de Sergio Endrigo e Sergio Bardotti, com um gravador Geloso, de fabricação italiana (aparelho de formato semelhante a um rádio com duas fitas pequenas na parte superior), ele conseguiu gravar a música vencedora do festival, através da transmissão de uma emissora daquele país europeu. “A Rádio Sociedade foi a primeira a rodar essa música no Brasil”, diz.
Um ano antes, em 1967, na Rádio Sociedade, Júlio recebeu no estúdio de gravação um trio da maior expressão da música nacional para gravar o jingle de uma loja de artigos de couro: Luiz Gonzaga, Marines e Abdias. Na primeira gravação, Gonzaga saiu do tom e ele parou. Na segunda, Luiz Gonzaga errou o texto e ele parou. Na terceira tentativa, novamente brecou. “Aí seu Luiz falou ‘seu molequinho, eu gravo no Rio e não tem nada disso’. Mas Abdias, que era o sanfoneiro, disse: ‘o menino está certo mesmo, Luiz’. Na quarta vez, deu tudo certo. Aí seu Luiz me abraçou e falou: ‘Menino, não fique aqui não. Vá pro Sul que você é muito bom!'”, recorda, sorrindo, Júlio Soares.
Por Zadir Marques Porto