No universo da literatura da ciência política, um dos temas pouco estudado diz respeito às ditaduras. No entanto, as obras que se debruçaram sobre o tema logo se tornam um clássico a exemplo de “As origens do totalitarismo” de Hannah Arendt, ou ainda no caso do Brasil a ótima coleção de Elio Gaspari sobre a ditadura brasileira que retrata os anos de chumbo em um texto jornalístico saboroso de se ler.
Um estudo mais profundo e técnico sobre as ditaduras são escassos e os que existem muitas vezes circulam apenas nos centros acadêmicos e não chega ao público leigo. Lembro aos leitores que esta é apenas uma percepção pessoal. No entanto, a pouco encontrei livros que apontam as origens fundantes de uma ditadura política. As obras em geral se resumem a descrever os fatos sem apresentar quais os fenômenos que motivaram o surgimento de governos ditatoriais que entrelaçam os aspectos sociológicos, filosóficos e jurídicos. As ditaduras sempre assombraram a humanidade em diversas localidades desde a antiguidade clássica.
Mas recentemente foi publicado pela editora ContraCorrente uma obra que preenche essa lacuna e nos mostra as origens de uma ditadura. Refiro-me ao livro “O Estado Dual” de Ernest Fraenkel. Publicado pela primeira vez nos Estados Unidos em 1941, somente agora foi traduzido e publicado em nosso país.
O autor, advogado trabalhista alemão, vivenciou o horror da ascensão do nazi-fascismo quando militava nos tribunais de Berlim nos anos de 1933 a 1938. Por exercer seu ofício como jurista, Fraenkel estava numa situação de privilégio ao observar de perto como funcionava a máquina alemã de opressão contra aqueles que eram tidos como traidores do ideal alemão defendido pelos nazistas.
De origem judia e por ter lutado na Primeira Guerra, isso permitiu ao Fraenkel uma licença especial para continuar a advogar. Porém, por sua atuação profissional passou a figurar numa lista de indesejáveis e antes que fosse preso migrou para os EUA em 1938.
Na América, após os manuscritos de seu livro terem sido levados para fora da Alemanha escondidos na bagagem diplomática de um embaixador francês, os rascunhos chegaram às mãos de seu autor que finalizou o seu texto.
O título da obra diz respeito ao conceito dado por Fraenkel ao Estado alemão que ascendeu com a chegada de Hitler ao poder. Defendia o autor que a ditadura nazista coexistia dois Estados de existências simultaneas. Um chamado de Estado Normativo (Normenstaat) que respeitava as suas próprias leis e o Estado da Prerrogativa (Maẞnahmenstaat) que desobedecia suas próprias leis sem nenhum pudor.
Na observação de Fraenkel sobre o período nazista, no seu estudo havia um Estado que obedecia suas regras estabelecendo aquilo que seria legitimo ou não na visão dos nazistas. Por outro existia um Estado que agia de forma arbitrária e sem limites contra aqueles que sob a ótica ditatorial eram vistos como opositores do regime, sejam eles judeus, homossexuais, pessoas com deformidades físicas ou traidores ao ideário político do nacional socialismo. Nem que para isso desobedece ao regramento jurídico vigente com interpretações enviesadas da lei e da constituição federal.
Na análise de Fraenkel o Estado da Prerrogativa o poder era exercido de forma arbitrária e sem limites. Agia sem nenhum controle por parte do Judiciário. Sua atuação servia para garantir as perseguições políticas e os expurgos. Suas decisões saíam do Poder Executivo e não importava se houvesse decisão do judiciário contrário ao entendimento dominante do chefe político. Para uma parcela do povo alemão, representativo do espectro dito arianao, todas as benesses e cumprimento das normas sem arbitrariedades. Essa metade do Estado conseguia manter a ordem e a obediência às normas. A profusão de normatividade permitia esse controle intenso sobre a sociedade germânica.
O livro “Estado Dual” trás uma análise profunda de dentro da administração pública nazista e como este tipo de situação de domínio total permitiu que consolidasse um governo tirânico que levou milhões a morte. A erudição do Autor nos leva a observar como um aparato político consegue submeter os sistemas judiciais a suas vontades, fazendo uso apenas de interpretações exóticas e a criação de leis episódicas para perseguir e matar. A mola propulsora é o controle do judiciário, tornando esse poder subserviente aos arroubos autoritários do Poder Executivo.
A tese descrita pelo escritor alemão da dualidade do Estado ainda é contemporânea. Não está muito longe das ditaduras ainda reinantes em alguns lugares no mundo que se comportam como descrito no livro. Os exemplos são inúmeros. Como ainda as tentativas de golpes para tomar de assalto o Estado repitam as observações descritas pelo advogado alemão no seu livro.
A edição brasileira nos brinda com a introdução da edição de 1941 com o título A etnografia do Direito Nazista: Os fundamentos intelectuais da Teiria da Ditadura de Ernest Fraenkel, o prefácio da edição italiana de Noberto Bobbio e o prefácio da edição alemã de 1974. Por fim tem também o posfácio da lavra dos brilhantes Pedro Serrano e Georges Abboud, dois geniais juristas.
Recomendo a leitura dessa obra seminal para entender a ascensão do nazismo e como sua estética ainda permanece com força nos dias atuais.