Assassinato político de Marielle Franco reativa as ruas e desafia intervenção no Rio

Temer gravou um vídeo e o ministro da Segurança, Raul Jungmann, no Rio, prometeu em coletiva de imprensa uma rápida investigação sobre o que aconteceu e assegurou que os culpados irão pagar.

� AP

A força das ruas tornou-se um inesperado desafio para o Governo de Michel Temer (MDB) e sua aposta em uma inédita intervenção federal como bandeira eleitoral e resposta para caos na segurança pública do Rio. O presidente colocou suas fichas em nomear como interventor federal o general Walter Souza Braga Netto, chefe do Comando Militar do Leste e, desde o último dia 16 de fevereiro, também chefe máximo da segurança pública fluminense, ainda que nem sequer haja um plano oficial para a ação. Agora, essa cadeia de comando - da Polícia Civil ao presidente - tem que responder por um dos mais emblemáticos crimes políticos da história recente brasileira. Não que o tipo de delito não aconteça no Estado do Rio ou em outras partes - a campanha municipal na Baixada Fluminense deixou um rastro de sangue -, mas a ousadia de executar uma promissora líder em pleno centro do Rio sinaliza que seus autores decidiram cruzar uma linha vermelha para enviar uma mensagem.

Marielle era, desde 28 de fevereiro, a relatora de uma comissão da Câmara dos Vereadores criada para fiscalizar a intervenção, com o poder de aprovar relatórios e providências contra militares e policiais. A vereadora também denunciou quatro dias antes a truculência da Polícia Militar no bairro de Acari, na periférica Zona Norte do Rio. Foi com esse contexto em mente que muitos apoiadores de Marielle viam em policiais o principais suspeitos do assassinato. As circunstâncias indicam que foi uma execução planejada, uma hipótese com a qual a Polícia Civil já trabalha. Foram nove tiros no carro, sendo que quatro atingiram a cabeça da vereadora. Nada foi levado após o crime. O vidro do carro era escuro, mas os atiradores sabiam que ela estava sentada no banco de trás do lado direito, o que levantou a suspeita da polícia de que ela fora seguida. O interventor Braga Netto, responsável pela segurança pública do Rio, não veio a público falar sobre o caso. Limitou-se a emitir uma nota repudiando "ações criminosas como a que culminou na morte da vereadora Marielle Franco e de Anderson Pedro Gomes" e dizendo que "se solidariza com as famílias e amigos". O Governo federal tentou reagir. Temer gravou um vídeo e o ministro da Segurança, Raul Jungmann, no Rio, prometeu em coletiva de imprensa uma rápida investigação sobre o que aconteceu e assegurou que os culpados irão pagar.

Sem Polícia Militar nos protestos

A comoção que inundou as redes sociais na noite de quarta-feira se transformou numa multidão que começou a se formar ainda na parte da manhã diante da Câmara de Vereadores, na Cinelândia, no centro do Rio. Pessoas se abraçavam e choravam. Recordações, dor, luto e silêncio - uma atmosfera que se repetiria mais tarde na multidão que ocuparia a av. Paulista, em São Paulo, outras das cidades que se mobilizaram. Pouco antes das 15h, os caixões com os corpos de Marielle e Anderson chegaram na Assembleia para um velório reservado apenas para familiares e amigos. Do lado de fora, a vigília continuava. Uma hora depois, os deixaram o recinto sob fortes aplausos e seguiram para o cemitério do Caju (ela) e Inhaúma (ele). "Justiça! Justiça! Justiça!".

A Polícia Militar, que sempre se faz presente nas manifestações, fez-se notar pela sua completa ausência no ato do Rio. Ao longo de todo o dia, nenhum policial foi visto no centro da cidade. "Não acabou, tem que acabar, eu quero o fim da Polícia Militar", cantavam os manifestantes.

A multidão começou então a se mover e a crescer. Um cortejo liderado por mulheres negras deixou a Cinelândia e caminhou pela Avenida Rio Branco cantando: "Por Marielle, eu digo não, eu digo não à intervenção!". O ato entrou pela rua da Assembleia e finalmente alcançou a rua Primeiro de Março, onde fica a ALERJ. Era lá que estava marcado, para as 17h, a concentração para um ato contra o genocídio negro. "Marielle, presente! Marielle, presente! Anderson, presente! Anderson, presente! Hoje e sempre!", repetiam os manifestantes. Uma vez na Assembleia Legislativa, líderes partidários, políticos e sindicalistas foram se revezando no microfone. "Mataram mais uma de nós, mataram mais uma de nós, mataram mais uma de nós. Assim como matam nossos filhos", disse, muito emocionada, a vereadora de Niterói Talíria Petrone, também do  PSOL. "Somos muitas Marielles vivas", concluiu. Já a deputada federal do PCdoB Jandira Feghali resumiu: "Marielle morreu porque sintetizava as três opressões que tem no país: a opressão de gênero, a opressão de classe e a opressão racial. (...) Este crime foi político. E crime político não se responde individualmente, se responde coletivamente".

Um abatido Marcelo Freixo, deputado estadual pelo PSOL e mentor político de Marielle, com quem conviveu por mais de 10 anos, foi abraçado por Chico Buarque. "Está muito difícil pra mim. Mas vou seguir. E vamos descobrir quem fez isso, nem que seja a última coisa que eu faça na minha vida", disse Freixo. Chico também fez um breve discurso: "Eu só quero prestar minha homenagem à minha vereadora Marielle. Vamos iniciar a caminhada até a Cinelândia". E assim a multidão voltou a se movimentar pela rua Primeira de Março para fazer o caminho de volta à Câmara dos Vereadores.

De volta a Cinelândia, a estudante de direito Mariane Oliveira, de 20 anos, conta da emoção em ter votado em Marielle. "Foi o meu primeiro voto. Eu sempre tive muita ansiedade em votar pela primeira vez. E quando eu a conheci, reconheci nela a pessoa que eu queria que me representasse. Eu fiquei muito feliz e sabia que tava fazendo a coisa certa". E qual recado ela queria passar na manifestação? "Eu não tenho a voz para falar isso que não sou negra, mas eu acho que as pessoas começarem a respeitar e dar voz a mulher negra. Elas incomodou tanto não só porque ela tocou na ferida, mas por ser negra e vir da periferia".

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